Hospital das despedidas: pioneiro em cuidados paliativos do SUS oferece dignidade no fim da vida

No alto do bairro Monte Serrat, em Salvador, um casarão do século 19 abriga uma iniciativa inédita no Brasil: o primeiro hospital público inteiramente voltado para cuidados paliativos no Sistema Único de Saúde (SUS).

O Mont Serrat não é um hospital convencional — não há pronto-socorro, sala de reanimação ou Unidade de Terapia Intensiva. Ali, o foco está em oferecer conforto, escuta e dignidade a pacientes com doenças graves em estágio terminal.

Instalado onde antes funcionava o hospital de infectologia Couto Maia, o Mont Serrat foi inaugurado no fim de janeiro e conta com 64 leitos, voltados a pacientes com expectativa de vida inferior a seis meses. A proposta é cuidar do corpo e da alma — não encurtar, tampouco prolongar artificialmente a vida. Como define a médica Karoline Apolônia, coordenadora do Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia, “aqui, o foco não é a morte, mas o cuidado enquanto vida houver”.

Uma nova forma de acolher o fim

A estrutura do hospital reflete sua filosofia: não há corredores frios e apressados, mas pavilhões com vista para o mar, quartos iluminados, um píer voltado ao pôr do sol e a “Sala da Saudade” — um espaço confortável para que familiares possam se despedir com afeto após o falecimento de um ente querido. Até o necrotério ocupa um espaço central no prédio, simbolizando a naturalidade do ciclo da vida.

Entre os pacientes que passaram pelo Mont Serrat está Ayrton dos Santos Pinheiro, 90 anos, ex-maratonista. Internado com câncer de próstata, ele se surpreendeu ao reencontrar, da janela do hospital, o percurso das corridas que fazia décadas atrás. “Quando cheguei aqui, minhas forças se renovaram”, disse. Seu filho, Ayrton Júnior, resumiu: “Agora, o mais importante é o conforto do presente, um dia de cada vez.”

Cuidado humanizado e empático

A abordagem do Mont Serrat é baseada no diálogo com pacientes e familiares. Todos os profissionais — de médicos a seguranças — recebem treinamento para promover empatia, escuta ativa e respeito. Perguntas como “o que você gosta de comer?”, “quer fazer a barba?” ou “qual seu time?” fazem parte da rotina.

Histórias como a de Donizete Santana, 33 anos, revelam o impacto desse cuidado. Diagnosticado com câncer após um assalto, ele chegou ao Mont Serrat debilitado. Sua esposa, Ângela, conta que ele gritava de dor em outro hospital público. “Aqui, fomos acolhidos como em nenhum outro lugar. Isso aqui é um pedacinho do céu”, disse ela. Donizete faleceu dois meses depois, mas em paz.

Um projeto que surgiu de um sonho

A ideia do hospital começou em 2019, com a criação do Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia. Segundo a equipe médica, cerca de 20% a 30% dos pacientes da rede pública estadual têm indicação para cuidados paliativos. O Mont Serrat surgiu para preencher essa lacuna. Desde então, já operava próximo da capacidade máxima.

A proposta se alinha a uma demanda crescente: a população brasileira está envelhecendo. Dados do IBGE indicam que, até 2070, 40% dos brasileiros terão mais de 60 anos. Para os profissionais envolvidos, iniciativas como essa são essenciais para garantir dignidade na reta final da vida.

“O mar é o nosso maior altar”

O hospital, mantido pelas Obras Sociais Irmã Dulce, é laico. Em vez de capela, um píer à beira-mar se tornou o principal local de contemplação. Ali, pacientes se despedem, fazem pedidos de aniversário, tomam sol ou simplesmente bebem um copo d’água com a ajuda de uma enfermeira — como fez dona Maria de Carvalho ao completar 78 anos. Quinze dias depois, sua filha Bárbara se despediu dela com gratidão no coração.

O Mont Serrat ainda é único em sua proposta dentro do SUS, mas inspira esperança de que outras portas se abram país afora. Como disse a médica Karoline: “Se não nos organizarmos como sistema, não conseguiremos cuidar das pessoas que estão envelhecendo.”

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